RECEM NASCIDOS MORREM POR FALTA DE UTI ENQUANTO DEFENSORES LUTAM CONTRA MARE

29/04/2019 29/04/2019 16:06 363 visualizações

Notícia originalmente publicada no portal de notícias RD News

"Lutar contra a maré”, descreve a defensora Alessandra Ezaki, que atua em Sinop (a 500 km de Cuiabá), sobre seu trabalho no caso da recém-nascida indígena Milena Kaiabi que faleceu, nesta terça (23), enquanto aguarda transferência para um leito de UTI neonatal na rede pública de Mato Grosso. A menina esperou por 15 dias por alguma ação do Poder Público, enquanto a Defensoria enfrentava burocracia e falhas na comunicação entre órgãos para resolver a situação.


“Gostaria que tivesse sido evitado. Queria que ela tivesse a oportunidade de ter o tratamento. Quando a gente lutou, lutou, lutou e ela não resistiu é como se tivesse... não sei te dizer em palavras, mas... Impotente. De Lutar contra a maré”, relata ao RD News.


A recém-nascida Milena é da etnia Kaiabi. A aldeia fica localizada no Parque Nacional do Xingu. Tão logo deu a luz, a mãe menor de idade teve que levar a menina ao hospital na cidade de Sinop.

A suspeita é que a recém-nascida tenha falecido de meningite, mas a Secretária de Estado de Saúde aponta que a causa do óbito foi devido a um quadro de pressão intracraniana. A pasta informou que não havia encontrado uma vaga com o perfil que a recém-nascida exigia. É o segundo caso de morte de bebês do interior de Mato Grosso que aguardam transferência para leitos de alta complexidade.

Alessandra conta que ficou emocionalmente ligada com o caso da Milena “por ser recém-nascida e por não ter dado tempo de ela ter recebido o atendimento, que deveria ter recebido como todo ser humano”. “Na minha cabeça não cabe isso. O Poder Judiciário já tinha mandado [liminar]. Tinha que ser feito alguma coisa. Ela tinha que ter o direito de receber o tratamento”, completa.

Como órgão acessório ao Poder Judiciário, a Defensoria Pública é procurado por familiares ou assistentes sociais para pedir ajuda à pacientes que não tem condições financeiras para procurar um advogado particular. Eles propõem uma ação judicial para obrigar o Estado a prestar o atendimento que já deveria ser dado. Alessandra ressalta que eles não falam diretamente com o Estado, e que busca a solução do enfermo pela Justiça.

A defensora disse que são praticamente “diárias” as ações judiciais para cobrar o Estado a transferir pacientes para leitos de UTI. Não somente para recém-nascidos, mas para pediátricos e adultos também. A Defensoria não organiza números de casos judiciais.


“O ideal seria que a gente nem precisasse entrar com as ações. No mundo ideal, saúde é para todo mundo. Mas, como em regra, o orçamento é sempre menor que a necessidade, a coerção judicial é uma forma de conseguir”, comenta.


Alessandra conta ainda que era mais fácil conseguir orçamento de hospitais privados e pedir o bloqueio judicial para garantir uma vaga. Mas eles têm se recusado de fornecer orçamentos dos custos de internação. Para a defensora, as empresas temem calote do Estado para pagar o serviço. "As dificuldades estão aumentando", disse.


Caso Milena


Alessandra narra que recebeu o caso da Milena em um plantão no dia 10 de abril. Ela foi procurada por uma assistente social, da Casa de Apoio da Saúde Indígena de Sinop, que estava com um laudo médico que apontava a necessidade urgente de internar a recém-nascida em uma UTI. Com base nesses documentos, a defensora entrou com uma ação na Justiça para obrigar o Estado a conceder o atendimento necessário.

O Judiciário aceitou o pedido da defensora ainda na noite do mesmo dia. Diante de um oficial de justiça, o Governo e a Prefeitura de Sinop também foram notificados da decisão. No entanto, a Defensoria aguardou o cumprimento da liminar por 14 dias até o falecimento da pequena.

A partir de então, Alessandra e outros defensores que ajudaram a atuar no caso enfrentaram uma série de dificuldades para conseguir o atendimento. Burocracia, falta de comunicação e demora de agir foram os motivos que levaram a morte da Milena. Enquanto aguardava a resposta do Poder Público, eles tomaram diversas medidas administrativas, como ligar para Central da Regulação (CR) do SUS , em Cuiabá, para saber da disponibilidade da vaga.

O primeiro desafio foi quanto à documentação da recém-nascida. Nascida na aldeia do Parque do Xingu, ela não foi registrada oficialmente no cartório ou cartão SUS e, como foi internada logo após ao nascer, a papelada ainda não tinha sido providenciada. Em Cuiabá, a CR informou que, sem o cadastro, Milena não poderia entrar no sistema e conquistar uma vaga.

Inicialmente, os médicos do município tentaram uma manobra. Eles inseriram no sistema o pedido de UTI para a recém-nascida com o número do cartão SUS da mãe. “Mas havia essa contradição – como é que é recém-nascido e tem 16 anos”.

A defensora explica:

“o pedido informava que a menina, com apenas 13 dias de vida, precisava de uma UTI, mas as informações do cadastro estavam no nome da mãe. Entrou em contradição. A idade não batia”.


A recém-nascida precisava de número dela. Mas, sem a certidão de nascimento, não dava para fazer. Quase uma semana depois da entrada na UPA, é que se descobriu que, somente com o nome da mãe e dados básicos (nome e idade), se podia abrir o cadastro. O que foi feito após Defensoria intermediar a situação e resolvido pelos órgãos de saúde do município de Sinop.

Enquanto isso, a Defensoria mandou uma série de ofícios a hospitais privados para mandar o orçamento do custo da internação na UTI neonatal. Em Sinop, não havia vagas na rede pública; e, na Capital e demais municípios, as empresas hospitalares não forneciam informações sobre o preço do serviço aos defensores por medo do bloqueio e do calote.

Defensora Alessandra diz que a sensação é de impotência

Após conseguir um número SUS para a pequena Milena, Alessandra ligou novamente na CR, na quarta do dia 17, para saber qual a posição do bebê na fila para uma UTI. Foi quando a defensora descobriu que o órgão não foi comunicado da liminar deferida pela Justiça dada sete dias antes – mesmo o seu representante de Sinop ser notificado da decisão. A profissional acredita que, enquanto a pequena Milena não tinha cartão SUS, seu nome não estava no sistema para encontrar uma vaga de UTI neonatal.

No dia 22, a Defensoria conseguiu orçamento num hospital particular de Goiânia. Eles pediram o bloqueio judicial das contas públicas e do transporte aéreo para levar a recém-nascida ao estado vizinho. Os dois foram deferidos pela Justiça ainda no mesmo dia, mas, no dia seguinte, a recém-nascida não resistiu à enfermidade e veio a falecer.

Com a morte da recém-nascida, Alessandra terminou de atuar nesse caso. A defensora não pode entrar com uma ação judicial para cobrar indenização por danos morais. Isso teria que ser do interesse da mãe e família da Milena.

Contudo, a história fica. Alessandra acredita que Milena é só um exemplo do que acontece no Estado. A defensora pede menos burocracia e mais comunicação entre órgãos para atender os pacientes.

“Vamos primeiro olhar de tentar resolver o caso e, depois, ajustar a burocracia. Vamos olhar para esse caso para melhorar e ser mais ágil. Ver as falhas e tentar as resolver as falhas, e não ficar dando justificativas”, pede.


Outro lado

O RD News procurou a SES, que emitiu a seguinte nota:

A Secretaria de Estado de Saúde (SES-MT) reconhece que há déficit de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Mato Grosso, não somente na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), como também na rede de saúde particular; sendo esse um problema nacional e não específico apenas de Mato Grosso.

A paciente em questão aguardava o atendimento de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal, pois não havia sido encontrada uma vaga com o perfil assistencial que o quadro exigia. Neste contexto, a SES-MT esclarece que não há impeditivo, no que se refere ao atendimento de recém-nascidos, na ausência do Cartão do SUS – visto que o bebê pode ser representado pela sequência numeral da mãe.

O órgão estadual ainda enfatiza que trabalhou incessantemente na busca pela viabilização de uma vaga de UTI, da mesma forma que está empenhada na resolução de outros casos em Mato Grosso, e destaca que, desde o início da nova gestão, atua junto aos outros entes públicos responsáveis pela manutenção dos serviços do SUS – Governo Federal e prefeituras –, no sentido de aumentar a oferta de UTI’s.

No entanto, para funcionarem, os serviços de alta complexidade requerem prazo razoável e investimento financeiro em novos equipamentos, em contratação de profissionais específicos e em habilitação técnica por parte do Ministério da Saúde.

Fonte: RD News